Há uma aura de conto de reis e princesas ao visitar o Palácio dos Condes de Anadia.
E o vinho sempre fez parte desta história.
A sumptuosa obra arquitectónica edificada no século XVIII e que mantém as suas dimensões originais fica bem no coração da cidade de Mangualde a escassos 20 minutos da cidade de Viseu, integrada na região vitivinícola do Dão.
Até o século XIX, a localidade era conhecida como Azurara da Beira, foi elevada a cidade em 23 de agosto de 1986. É uma das poucas casas em Portugal que ainda pertence à mesma família há 400 anos. Neste caso a família Paes do Amaral.
Como boa parte da nobreza, os Paes do Amaral viviam na capital. E era normal rumar ao interior, durante o Verão, neste caso, a Mangualde. Estas casas senhoriais rurais, estavam dedicadas principalmente à produção agrícola.
No século XVIII, a nobreza portuguesa seguindo a moda europeia, preferia o verão para estadias nas suas casas de campo ou solares. Hospedam familiares e amigos, proporcionando festas, bailes e grandes momentos de entretenimento. E mesas sempre postas para os convidados. E para isso essas casas de campo “rurais” passaram por intensas mudanças para atender às novas funções sociais.
Na visita a este magnífico edifício, somos levados numa viagem a um passado, como uma verdadeira máquina do tempo, que combina história, cultura e arquitetura. Nas salas de refeição, a mesa bem atoalhada, de loiça, cutelaria e copos de cristal alinhadas, logo fantasiamos uma imagem faustosa e de prazer gastronómico pensando nos vinhos e comidas que estariam sobre a mesa.
O palácio está envolto por 30 hectares de vinhas e mata densa, que cria uma atmosfera onde a fronteira entre jardins e vinhas se confunde. Os recantos de pedra e árvores centenárias, proporcionam uma visão encantadora da vida nobre do passado. Aliás, logo após transpormos o portão da rua para o pátio interior, acolhe-nos uma visão que parece tirada de um qualquer universo fantástico. É um plátano com 350 anos (dizem-nos) totalmente despido de folhas – estamos no inverno - e que concorreu para o concurso de árvores mais bonitas de Portugal. Naquele instante a beleza não era o seu ponto forte, mas não deixava de impressionar.
Já no interior, depois do pátio e após um corredor, a vista abre-se para uma das mais incríveis singularidades desta propriedade. Pelo menos, aos olhos da atualidade. É que tudo isto (palácio, jardins, vinhas, mata) está totalmente murado. O contraste com a vista dos modernos e altos edifícios do lado de lá do muro cria a sensação de que a propriedade está, de alguma forma, suspensa no tempo.
Dentro dos muros do Palácio há 10 hectares de vinha, em solos graníticos a 500 metros de altitude com vistas para a Serra da Estrela, somos guiados através dos distintos talhões da vinha em patamares desnivelados e delimitados por sebes de buxo, circundados por uma floresta de pinheiros, cedros e carvalhos.
Os nossos guias são os técnicos de enologia e viticultura João Osório e Nuno Martins Silva. O primeiro integra o projeto desde 2019 e o segundo chegou já com a vindima de 2022. São a equipa atual de enologia e viticultura do Palácio Conde de Anadia.
A vinha e o vinho sempre existiram na propriedade (a adega com os antigos lagares ali estão para o confirmar). Na segunda metade do século XX, esta vertente foi ampliada e fortalecida. D. Manuel Maria de Sá Paes do Amaral, pai do atual proprietário Miguel Paes do Amaral, que nos deixou em 2020, dedicava-se com paixão ao negócio agrícola, com especial destaque para a viticultura. Nos anos 60, reativou a produção de vinho ao plantar uma pequena vinha, a "Vinha do Conde", para desfrutar em casa com seus amigos.
Nuno e João, vão-nos dizendo que haveria uma grande variedade de castas, com algumas particularidades pelo meio. Uma delas é de o Jampal ter tido presença na vinha. O Encruzado também lá estava, mas não era muito querida – o que, temporalmente, bate certo, pois o ressurgimento e valorização da casta é bem mais recente.
"Os velhotes faziam um branquinho e davam primazia ao Bical, mais aromático. O Encruzado era mais neutro e para eles dava vinho sem grande piada!”. Acrescentam “a maioria do encepamento era de Fernão Pires.“
Esse vinhedo foi removido e replantado nos anos 90. Em 2010, ocorreu uma remodelação completa da vinha, destacando as castas Touriga Nacional, Alfrocheiro e Jaen. Todas tintas. Foi então que surgiram os vinhos Casa Anadia rosé, tinto e reserva tinto, além do tinto Palácio Anadia. Os primeiros engarrafamentos ocorreram em 2015.
Apesar de todas as renovações, miraculosamente, sobreviveram três linhas de vinhas centenárias, algumas com mais de 120 anos de idade, com castas ainda por identificar e das quais sairá um vinho que lhes prestará devido tributo.
Também no 2015 se iniciava o processo de enxertia de alguns talhões de tinto, quase totalitários, em branco, com as castas brancas Encruzado, Gouveio, Cerceal-Branco e Uva Cão.
Nas últimas décadas, o projeto vitivinícola tem sofrido ajustes e em 2018, à época com outra nova equipa, a marca Casa Anadia passou a chamar-se Conde de Anadia. Nesse mesmo ano, aproveitando o potencial turístico, com a curadoria de D. Maria Mafalda Paes do Amaral, o palácio abriu-se aos visitantes. E tem sido um sucesso! Dez mil visitantes logo nos primeiros três anos, tornando-se uma das principais atrações turísticas na zona centro do país, e já galardoada com Prémio de Excelência do TripAdvisor em 2019 e 2020, além da distinção Travelers' Choice 2020. Todo o programa de enoturismo pode ser consultado aqui.
E o que traz a nova equipa?
Uma das áreas de intervenção é a da transição para princípios de agricultura regenerativa e sustentabilidade social. Transição suave, “mudar o paradigma e capitalizar o que já está bem feito nas práticas de gestão agrícola”. Algo a que trabalhadores estão pouco habituados. Por baixo dos nossos pés, caminhando e olhando, percebe-se o solo vivo e com grande variedade de espécies que pontificam nas entre linhas.
E os vinhos?
Nuno no seu jeito peculiar diz que a ideia é “manter classicismo. Trabalhar as referências clássicas dentro do registo da casa, mas com alguma irreverência!” Outra das ideias é a de “trabalhar com monovarietais”. A primeira vindima tem sido também de testes e a oportunidade de Nuno conhecer o que tem para trabalhar. A colheita por talhão já trouxe algumas surpresas agradáveis em alguns que "supostamente não eram as mais interessantes", ao passo que o oposto também ocorreu – "aqueles com boas expectativas revelaram-se menos satisfatórios!"
No palácio, de momento só se faz o estágio em barrica. Os vinhos são verificados numa adega próxima. Mas, os lagares antigos anunciam que ali se fazia vinho. E há planos para retomar a vinificação na propriedade. Olhando os lagares com atenção, reparamos que parecem estar suspensos, apoiados em bases de pedra espaçadas entre si. Coisa pouco vista, uma vez que os lagares de pedra costumam estar “colados” ao chão ou totalmente assentes numa superfície. João explica a razão. Diz, “em regiões como no Dão em que o frio começa cedo e a vindima se realizava tarde, era muito stressante conseguir levar por diante as fermentações, alcoólica e maloláctica até princípio de novembro. É uma chatice haver essa interrupção e o recomeço lá para a primavera. Por isso os lagares têm um espaço por baixo para aquecer com lenha e para deixar as fermentações ocorrerem.” Lá está, o engenho a funcionar! - pensamos, admirando o tão simples e eficaz raciocínio
Uma prova na adega de vinificação, percorremos em prova todas as cubas, castas isoladas e balizas, dos vinhos sob a diretriz desta equipa. Frescura, pureza, vivacidade e já um certo ar a Dão clássico.
Participamos na primeira fase de construção dos primeiros lotes, mais como autênticos curiosos, apesar do esforço em fazer o melhor possível. E contribuir positivamente. Assistimos a uma verdadeira arte combinada com muita objetividade nas matemáticas de volumes, do bom senso e previsão de vida útil dos vinhos até à esquiva ao desperdício. Tudo isto, e sendo capaz de encaixar os vinhos nas gamas e estilo pretendidos. Estamos curiosos em ver os resultados!
Numa propriedade impregnada de tradição, o grandioso palácio testemunha séculos de história e reinvenção. A vinha e o vinho são testemunhas. Reinventando-se nas últimas décadas. E as promessas do presente sugerem que muito está para vir.
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