Quando o casal Adelino e Teresa Martins se mudaram para o Barreiro, ouviram falar muito no Bastardinho. “Nós até tentamos perceber, o que é isso de Bastardinho! Não conseguimos comprar, não o encontramos, mas toda a gente falava do Bastardinho”, diz-nos Teresa. Tentaram, inclusive, chegar à fala com um descendente de um grande produtor do início do século. Mas de pouco adiantou.
Mesmo assim, a sua vontade de fazer ressurgir o célebre Bastardinho da região, levou-os a plantar em 2017 uma vinha dessa casta na Quinta da Estalagem, propriedade toda murada com cerca de 5 hectares, que remonta aos séculos XVII/XVIII, nas margens do Rio Coina em Palhais, concelho do Barreiro, a sul da capital Lisboa.
O vinho, a propriedade e todo o ambiente carregam um imenso valor na história de Portugal. A região vitivinícola, conhecida como Península de Setúbal sempre foi reconhecida pela sua produção vinícola. Destaca-se a uva Bastardo, que originava um renomado vinho licoroso, assim como os do Lavradio, uma localidade próxima ao Barreiro, que eram altamente apreciados e procurados. Satisfaziam grande parte da sede da corte pelos melhores exemplares. Havia abundância e a exportação era bem sucedida. Contudo, a chegada do oídio em 1852 levou ao declínio vinícola desta área.
Hoje, na Quinta da Estalagem, uma das poucas propriedades que resistiu à pressão urbanística que a circunda, encontra-se a única vinha de Bastardo da região. Agora, tornava-se necessário fazer o vinho. E chegaram à fala com o professor Virgílio Loureiro, dos que mais tem feito em prol da descoberta, divulgação e preservação dos vinhos históricos em Portugal. Este, quando soube que havia aqui, no antigo concelho do Lavradio, uma vinha de Bastardo, obviamente, não descansou enquanto não conheceu os proprietários.
Conheceram-se e ligados pelos mesmos interesses, juntos meteram mãos à obra para fazer renascer o Bastardinho. Só o vinho não bastava.
Um amigo de Virgílio Loureiro, que conhece bem a área, e quem lhe proporcionou conhecimento deste projeto, contribui na pesquisa e no incremento do valor histórico da localidade e dos métodos antigos de como se produzia ali os vinhos.
Em meados de 2023, cruzamo-nos com Virgílio Loureiro numa feira de vinhos. Confidenciou-nos que estava a trabalhar no ressurgir dos “históricos vinhos do Lavradio”. E logo aí ficou a promessa de os conhecer. Aliás, já por aqui lhes havíamos feito referência. Saber desse feito, foi uma surpresa enorme! E uma alegria! A curiosidade ficou ao rubro. Prontamente, decidiu-se agendar uma visita. Ter a oportunidade de degustar o que só conhecia pelos livros e que só imaginara, não estava nos planos.
E finalmente, uns tempos depois, chegou o dia da visita. O Professor Virgílio levou-nos à Quinta da Estalagem. Passado o portão, descortinamos uma envolvente que nos ligou a um tempo e a acontecimentos grandiosos passados da história portuguesa.
Adelino e o professor, traçam-nos em grandes pinceladas, que um moinho de maré a poucos metros, moía a farinha que produzia os biscoitos - de farinha de trigo e água, que não levavam sal nem fermento para ficarem duros que nem pedra – que abasteciam as caravelas na época das navegações dos Descobrimentos. Eram parte da ração dos marinheiros.
“O dueto, vinho e biscoito, era o truque para aguentar o tempo no mar. Molhavam-se no vinho e na água para os humedecer de modo a serem comidos mais facilmente. A quantidade necessária era tal que existiam aqui 140 moinhos de maré, a maior concentração mundial."
Muitos outros acontecimentos de grande importância aqui se passaram, os quais iremos contar noutras publicações. Voltando ao vinho. Com um sorriso, o professor diz-nos que tudo foi feito de 2022 para 2023 onde antes era uma garagem “o que faz destes vinhos autênticos vinhos de garagem.”
A primeira vindima, para todos foi uma aventura. Para os proprietários foi ainda maior, pois não possuíam nenhuma experiência prévia na produção de vinho. Partiram do zero, tendo que adquirir tudo o que era equipamentos para a elaboração dos vinhos. Todo o processo foi desafiador, porém empolgante, pois cada etapa era uma novidade a ser desbravada.
O Bastardinho é a base e a inspiração do projeto. E em concordância com o professor, foram construindo um portfólio mais alargado de vinhos históricos, diz-nos Adelino com um brilho no olhar. Além de que a introdução do "Bastardinho" no mercado levará vários anos. Dispor de outros, nesse intervalo de tempo, ajudaria à caixa registadora.
Na mente do professor surgiam ideias para vinhos inspirados pelas sucessivas descobertas históricas. Assim, nasceu o portfólio que inclui um vinho branco em pote de barro (talha) em versão contemporânea, um vinho branco dos potes no estilo romano disponível em duas versões, um clarete medieval e um vinho branco de curtimenta. No fundo, são todos uma recriação do que já existiu.
Quando afirmamos que Portugal é uma nação de tradição vinícola, referimo-nos exatamente a isto! Apreciar vinho vai além de simplesmente bebê-lo. Ter conhecimento ou uma noção de como evoluiu até os dias atuais, enriquece significativamente a experiência de degustação do vinho.
Obrigado, Adelino, Teresa, professor Virgílio Loureiro e amigos, que trazem até nós um passado tão ignorado. Da nossa parte, experimentamos tudo e iremos manter-vos actualizados sobre os vários detalhes dos vinhos, bem como outras histórias e factos em publicações futuras.
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