É de vinhas centenarias, quase arcaicas, mas cheias de sabedoria de gerações, que José Domingues engarrafa o vinho dessas uvas que o isolamento do lugar permitiu preservar. O local onde algumas videiras lançam os troncos longos dobrados por cima de telhados do edificado antigo, videiras com formas alienígenas, que sem folhagem criam um cenário que parece tirado da saga “Jurassic Park”.
Neste lugar sente-se uma alma, uma essência tão forte que não é possível dissociá-la quando a vivenciamos e provamos os vinhos Terrunho d’Alma, o projeto que José criou em 2017.
Tudo isto longe dos olhares indiscretos, em que só lá chega quem bem conhece aqueles recantos. Estamos em Merufe, nas encostas do rio Mouro, uns dos vários rios na sub-região de Monção e Melgaço, que José conhece cada palmo de terra. Era aqui que brincava com irmão. Estas vinhas centenárias em micro terroirs feitos de curvas e declives escondidos pelos arvoredos, eram o seu recreio.
Tornou-se enólogo pois a família fazia uns vinhos que umas vezes saiam bem outras nem por isso, e ele ansiava saber os porquês disso. Essa vontade levou-o a estudar Engenharia Agroalimentar, em Santarém e por aí teve as primeiras experiências profissionais, mais tarde trabalhou com Anselmo Mendes, que na altura tratava de revolucionar a região, fez parte da equipa da Provam, passou pelo Soalheiro e integrou outros projetos, no Minho e na Galiza.
O Terrunho d’Alma foi a cedência de José à insistência de amigos e colegas para que avançasse com projeto em nome próprio.
É nesta paisagem serpenteada do vale do rio Mouro, de vales íngremes e que a 250 metros de altitude, é alto o suficiente para ver em cada curva da estreita estrada os casarios, as aldeias, a geometria distintiva dos terrenos agrícolas, os bosques que os delimitam, numa ruralidade encantadora que encerra incontáveis estórias. À vista, cada conjunto de micro propriedades afigura-se como um quadriculado agrícola, com vinha e hortícolas, de subsistência e talvez um dos motivos de algumas castas mais antigas terem sido preservadas, diz-nos José.
Já apeados em direção às vinhas, o carreiro que percorremos não parece capaz da circulação automóvel. A cada curva pelo interior do bosque que nos envolve, ora sentimos uma onda de calor na face, ora sentimos uma aragem de frescura tão perceptíveis que legitima o conceito de microclima parcelar que recorrentemente é falado.
Paramos para ver uma nova vinha que José plantou em terrenos que foi juntando do rendilhado de heranças. Trabalho feito a pulso, boa parte das vezes executado ao fim de semana. Alvarinho será a estrela desta empreitada. A caminho detemo-nos noutra parcela de vinha, em forma de meia-lua, nos terrenos da avó, José recupera uma casta que os locais chamam de Picopul tinto – “não se sabe quem a trouxe”, e que dela se fazia o Pical – vinho - e ou jeropiga.
Somos alertados para não pisar os morangos selvagens ocultos pela vegetação. José distingue-os com visão tipo raio-x. Aprendemos, também, a distingui-los. Denunciam-se pela cor e a folha.
Entretanto, chegamos ao tal cantinho tão especial de vinhas antigas em pergola bem tradicional, numa encosta de mini-socalcos verdejantes, plena de vida ali a escassos metros do rio. Temos de nos agarrar às videiras para mantermos o equilíbrio ao caminhar. Destas vinhas centenárias resultam, aparte o brilhante espumante e o Alvarinho categórico, um tinto capaz de converter quem não gosta ou tem má ideia dos tintos da região.
Este é um tinto diferente, de menor extração, acentuado na frescura aromática e recupera um estilo antigo de um passado glorioso dos “tintos de Monção” que há séculos atrás eram vistos, pasmem-se, como elegantes. Felizmente, hoje na sub-região, há quem faça o mesmo.
Algumas destas videiras estão em pé franco, José nem sabe se foi o avô que as plantou. Minhas multiplicadas por mergulhia, outras enxertadas em porta enxertos. A cor aberta tradicional dos “tintos de Monção” devia-se a algumas uvas brancas misturadas ou ao fato de uma planta ter duas castas diferentes, resultado de enxertias “caseiras”.
As pessoas “metiam o que gostavam” e ia tudo junto.
Nestas vinhas há um pouco de tudo o que são castas tradicionais: Tinturão Francês, Negrão, Cainho, Vinhão, Borraçal, Brancelho, Verdelho Feijão, um Alvarelhão da freguesia – que pensa ser outro clone de Alvarelhão - Pedral, Pical-pôlho (Pical), e outras. Só por isso já vale a pena conhecer.
Mas o projeto Terrunho d’Alma contempla ainda outro vinho, mas do vale do Lima, uma sub-região a sul de Monção e Melgaço. O Terrunho D'Alma "Notas Soltas" Loureiro 2021 é elaborado a partir de uma vinha de ramada com 70 anos de idade, de clones antigos pouco produtivos que resultam em teores alcoólicos baixos. A vinha está localizada em uma encosta com solos variados, com destaque para a componente xistosa. É um Loureiro recatado de aroma, ligeiro, mas afirmativo e com capacidade de guarda.
José e os seus Terrunho trazem alma e qualidade, preservam património e ainda consegue acrescentar coisas à revolução de qualidade da região.
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